Anti-vacina e anti-flúor. Ambos são movimentos organizados que depois da pandemia juntaram forças com discursos de grupos reacionários. Enquanto isso, profissionais da saúde estão utilizando esses discursos para desmerecer tratamentos convencionais e vender suas soluções sem evidência. Vamos analisar a correlação e traçar um paralelo entre os espalhadores de medo e mentiras em relação a vacina que muito se assemelham aos que espalham inverdades e narrativas falsas sobre o flúor utilizado de forma consciente na Odontologia. O meu objetivo aqui é mostrar para você como identificar falsos discursos, como rebater e como traduzir isso para os seus pacientes.
Primeiramente, acho importante mencionar que todos esses movimentos existem desde muito antes da pandemia de Covid-19 de 2020. Contudo, o assunto é polêmico e envolve política, como vários assuntos que permeiam nossa sociedade. Portanto, te convido a ler esse artigo de cabeça aberta, livrando-se de algumas paixões. Siga meu raciocínio até o final e veja se você acha que faz sentido. Este é um artigo de opinião embasado em uma vivência odontológica e larga pesquisa sobre os movimentos anti-vacina e o anti-flúor.
Antes da mais nada, é bom lembrar que a vacina sofre com “fakes” e inverdades praticamente desde a sua descoberta. Encurtando bastante a história, o médico Edward Jenner em 1796 percebeu que pessoas que ordenhavam vacas não contraiam a varíola humana se tivessem sido infectadas com a forma da varíola animal, mais branda. À partir daí ele começou a formar a ideia de que infectar alguém como uma forma mais leve de uma doença poderia fazer com que a pessoa não sofresse tanto ao contrair a doença mais grave, do mesmo tipo. Mesmo que ele não entendesse 100% dos mecanismos envolvidos. Lembrando que nessa época, Napoleão Bonaparte ocupava Milão e John Adams assumia como segundo presidente dos Estados Unidos.
A varíola foi uma das doenças mais letais desse período e hoje foi erradicada por causa da vacinação.
Tanto que a palavra vacina vem do latim “vaccinus”, isto é, derivado da vaca. Não demorou para que a desinformação fosse criada e espalhada. O medo de ser infectado com uma forma mais branda da doença para evitar que você pudesse sofrer as consequências da varíola humana amedrontava parte da população, eventualmente, por pura ignorância. Afinal, os boatos que circulavam eram de que a vacina poderia transformar você em um vaca. Qualquer discurso parecido com o que vimos no período da pandemia de 2020 não é mera coincidência. Só mudaram o bicho para jacaré.
Há relatos de mães que escondiam seus filhos embaixo da cama quando o vacinador batia na porta. Se o medo se justificava ou não, cada um pode ponderar dentro da sua realidade. Jenner fez essa descoberta de forma empírica, sem estudos científicos e métodos que não existiam como existem hoje. O fato é que a história se repete e hoje ela vem acompanhada de motivos ideológicos, políticos e principalmente econômicos. Você vai perceber isso em um discurso de um anti vacina ainda “dentro do armário”. São frases do tipo:
- “Ninguém em sã consciência é contra vacinas, mas ESSA VACINA CHINESA …”
- “Não somos contra, mas sabe-se dos efeitos colaterais terríveis …”
- “A vacina modifica o DNA do ser humano”
- “A vacina tem um chip que tem por objetivo o controle populacional”
- “A vacina contra a COVID-19 pode transmitir AIDS”
- “A vacina causa autismo, TDAH, problemas neurológicos e diminuição de Q.I.”
Charge inglesa do século XIX – pessoas “virando vaca” após tomarem a vacina (Imagem: James Gillray/Anti-Vaccine Society Print)
No final do século XX, o médico britânico Andrew Wakefield publicou um estudo totalmente fraudulento e enviesado que associava a vacina tríplice viral, que previne sarampo, caxumba e rubéula, ao autismo. Pronto. Mesmo sendo desmentido e provado seu interesse financeiro por trás da hipótese do estudo, essa ladainha anti-vacina perdura até hoje. O médico mentiroso e desonesto teve seu registro cancelado e a revista Lancet fez uma retratação do artigo. Infelizmente, o estrago já estava feito.
A varíola foi erradicada com estratégias de vacinação. A doença não existe mais. Então a nossa geração não conviveu com o trauma de ver gente morrendo de varíola ou ficando com horríveis cicatrizes e talvez não consiga enxergar a importância da vacinação. Entretanto, vimos e vivemos a pandemia de Covid-19. Será que isso não foi suficiente? Ou fomos contaminados com discursos políticos vindos de várias mídias que nos confundiram tanto a ponto de duvidarmos da eficácia da vacina? Será que embarcamos no discurso do tal tratamento precoce, ou remédios para vermes sendo usados para vírus? Até hoje tem gente que insiste que a Ivermectina pode de alguma forma eliminar o Covid-19. Foi uma pandemia de desinformação também.
Surpreendentemente, uma curiosidade: muitas vezes a desinformação serve ao lucro de determinado setor ou empresa. Por exemplo, a venda da Ivermectina cresceu 857% de 2020 a 2021, mesmo sem ter eficácia comprovada contra o Covid-19 – Reportagem da CNN
Quem viveu durante os anos de 2020 até hoje, fevereiro de 2025, sabe muito bem do que eu estou falando. Esse discurso vem tanto da boca de leigos, quanto de profissionais da saúde que usam de sua autoridade dentro e fora das redes sociais para desacreditar as vacinas. O alvo principal são as vacinas contra a COVID-19. A reclamação de que foram feitas “muito rápido”, o papo furado insano sobre “imunidade de rebanho”, “a vacina chinesa não teve pesquisas”, a “Astrazeneca causa coágulos e trombose”, a da “Pfizer pode causar miocardite em jovens” e casos de mortes relacionados a vacina que não conseguem chegar a conclusões definitivas.
O que não se consegue provar é a relação de causa-efeito de inúmeros problemas que SÃO ATRIBUÍDOS às vacinas. Muitas vezes são correlações espúrias, coincidências ou problemas advindos de outras origens.
De uma vez por todas, coloque uma coisa na sua cabeça, se você conseguiu chegar até aqui sem que sua ideologia política contaminasse sua emoção em relação aos parágrafos acima: vacinas, assim como medicamentos, possuem efeitos colaterais. Na grande maioria das vezes não letais. Então, diante de uma doença extremamente contagiosa, um vírus novo que estava matando milhões de pessoas, os benefícios superam os riscos. Esse é o cálculo que nós, profissionais de saúde, fazemos quando prescrevemos qualquer medicamento, quando tomamos decisões sobre o tipo de anestesia que a gente vai usar ou ainda quando optamos por um procedimento cirúrgico. Riscos x benefício.
Sob o mesmo ponto de vista, e o flúor? O que ele tem a ver com tudo isso? O flúor é considerado pela OMS como uma das maiores ações de saúde pública do século XX. Sabia disso? A fluoretação da água é uma forma infinitamente barata de controlar cárie. Somando estratégias como a adição de fluoretos nos cremes dentais desde os anos 1970-1980 foram extremamente especiais para a diminuição dos índices de cárie das populações mundiais. Além disso, cárie é uma doença mutilante, isto é, as pessoas perdem dentes por causa das lesões de cárie. Como resultado, perder dentes precocemente traz inúmeros problemas na própria boca e em todo o corpo.
Os Biológicos chamam o flúor de “química”, fomentando medo na população. O que eles não dizem é que o flúor está presente na natureza.
O flúor é um mineral que está presente na natureza. Está nas folhas das plantas, na água e no solo. É naturalmente parte do planeta Terra. Os fluoretos em concentrações ótimas são seguros, sejam aqueles que são adicionados na água de abastecimento, sejam os que temos nos cremes dentais fluoretados. Entretanto, ele sofre com falsas alegações e “fake news” há tempos, por grupos organizados, assim como o movimento anti-vacina. Similarmente, você vai perceber isso em um discurso de um anti flúor. São frases do tipo:
- “Flúor é uma neurotoxina perigosa”
- “Flúor é derivado do petróleo”
- “Flúor é derivado do Alumínio” (pessoal que faltou mesmo nas aulas de química)
- “Flúor causa autismo, TDAH, diminuição do Q.I.”
- “O Flúor era usado pelos soviéticos para controlar os norte americanos, um plano comunista”
- “O Flúor era usado nos campos de concentração nazistas”
- “O Flúor calcifica a glândula pineal, impedindo nossa conexão com o divino”
O flúor em quantidades ótimas é seguro. O único efeito colteral comprovado por ingestão de cremes dentais com flúor em tenra idade é a Fluorose Dental. Por isso – use sempre creme dental com flúor, mas fique atento a dose em crianças pequenas.
Perceba as similaridades nos discursos. Duas intervenções extremamente efetivas a favor da saúde das pessoas, tanto a vacina quanto a fluoretação sofrem quase das mesmas “fake news”. Por um lado a alternativa falsa dada a vacina vai ser o uso de outros remédios e tratamentos ditos precoces (que não funcionam no caso de vírus como a gripe ou o da covid-19). Por outro lado a alternativa ao flúor serão os cremes dentais sem fluoretos ditos naturais que não tem efetividade anti-cárie. Eu acho isso fascinante. Como o negacionismo entrou com força e quase que da mesma forma sobre duas ações efetivas e comprovadas para melhora da saúde pública.
Dessa forma, depois de amedrontar a população, vem o interesse econômico. Eles vão tentar te vender cremes dentais “veganos”, substâncias como xilitol, melaleuca, própolis e até carvão vegetal. Todos não tem ação anti-cárie comprovada e tão eficaz quanto os fluoretos. Além disso, tem um outro agravante: os cremes dentais ditos “naturais” e sem flúor custam bem mais caro do que os cremes dentais efetivos anti-cárie. Podem pesquisar.
Não é de hoje que percebo esse discurso nas redes sociais de profissionais da saúde – Médicos Integrativos, Dentistas Biológicos e companhia. Os mesmos que são anti fluoretação também exibem argumentos anti vacina.
Agora no início de 2025 fomos inundados com matérias nos grandes portais de notícias sobre um estudo que classificou o flúor como uma neurotoxina. Essa barra vem sendo forçada há décadas. A repetição da narrativa também ajuda a mentira a virar verdade. Deixo o link da reportagem completa também da CNN – AQUI
A Manchete: “Estudo mostra que crianças expostas ao flúor possuem QI menor; entenda”
Nesse sentido, uma leitura mais atenta da reportagem nos traz algumas revelações que não estão presentes nem na manchete e nem no lead: “A nova revisão inclui 74 estudos de 10 países. Inegavelmente, a maioria dos estudos, 45, vem da China, onde pesquisadores primeiro notaram diferenças de inteligência entre comunidades expostas a altos níveis de flúor e aquelas que não foram expostas.” Em seguida, ainda mais interessante: “Em declaração por escrito enviada à CNN, eles dizem que não tinham dados suficientes para saber se o nível de flúor recomendado para água potável tem algum impacto no Q.I. das crianças.”
Os próprios autores, em carta a CNN assumem que não tem dados suficientes para os níveis ótimos de flúor! Ocasionalmente, 19 parágrafos abaixo da manchete sensacionalista. Além disso, a constatação deles no estudo é que isso aconteceria com ALTOS NÍVEIS de flúor, isto é, mais que o dobro do que consideramos ótimo. Sem contar que o desenho do estudo utiliza medições de urina que podem dar grandes diferenças dependendo do dieta e o uso do “Quociente de Inteligência” – o tal Q.I. – não é uma boa ferramenta quando usada em comparação de populações tão diferentes.
Enfim, são tantas fakes que a energia que gastamos para desmenti-las é tremenda.
De maneira idêntica, sobre a história do flúor e sua relação com a glândula pineal, vale outro artigo no futuro. Hoje sabemos que o presidente eleito dos Estados Unidos Donald Trump fez promessas de campanha para a retirada do flúor da água de abastecimento. Robert F. Kennedy, indicado por Trump, assume o Departamento de Saúde e Serviços Humanos. Robert concorda com a retirada do flúor e é conhecido por falar contra vacinas. Apesar de não ser um anti-vacina assumido, como muitos que vemos por aí hoje. A distopia que estamos vendo nos Estados Unidos pode ter consequências aqui no Brasil. Com aquele tipo de pergunta bem vira lata de brasileiros que apoiam o protecionsimo de Trump e se dizem patriotas e liberais poderiam fazer: “Se os Estados Unidos tiraram o flúor da água, por que ainda continuamos usando aqui?”
Concluindo, nosso papel como profissionais da saúde é não nos deixarmos contaminar pelos discursos prontos. Ah Luiz, eu cheguei até aqui e percebi que você não passa de um comunista esquerdopata! Olha, eu não tenho culpa que essa parcela desse povo da direita pegou para si essas pautas que vão contra a ciência. Da mesma forma que os Dentistas Biológicos sequestraram as palavras “biológico”, “integrativo” e “holístico”. Comece a perceber você também nas redes sociais e fora delas.
Por último, nosso trabalho será árduo e cada vez mais difícil daqui para frente. No fim das contas, queremos o melhor para os nossos pacientes e o melhor é indicar tratamentos que tenham lastro científico e evidência robusta.
Um Abraço,
Dr. Luiz Rodolfo May dos Santos
Cirurgião Dentista, Periodontista
Links:
Quem é RFK Jr., ativista antivacina que comandará Saúde em governo Trump