Calma, querida leitora, querido leitor. O martelo é para chamar atenção no título, mas não quero te assustar. Apesar de nós, cirurgiões dentistas, termos um martelo como instrumento cirúrgico, estou falando do martelo “martelo” mesmo. Sim, aquele que você provavelmente tem na caixa de ferramentas em um armário de casa. Essa analogia desse artigo se refere a chamada Lei do Instrumento, ou Lei do martelo ou ainda ao Martelo de Maslow. Uma reflexão sobre viés cognitivo e escolhas de plano de tratamento odontológico que junto com o imediatismo da atualidade tem transformado a Odontologia e as decisões dos dentistas e pacientes. Vem comigo nesse texto que tudo vai fazer sentido.
“Se a única ferramenta que você tem é o martelo, é tentador tratar todo problema como se fosse um prego” – Abraham Maslow, 1966
Venho observando esse fenômeno dentro da Odontologia (e das áreas médicas) há algum tempo. Ele é alimentado pelo modo como nos divulgamos nas redes sociais, pelo mundo dos algoritmos e pela fase de especialidades que estamos vivendo. Essa história da Lei do Instrumento do Abraham Maslow me chamou atenção porque retrata com muita fidelidade a realidade que enxergo. Muitos dentistas querem resolver todos os problemas bucais com uma ferramenta só. Dependendo da especialidade ou do conhecimento, temos agora os especialistas em determinados procedimentos. Os que resolvem tudo com lentes de contato, ou que acham que alinhadores ortodônticos resolvem qualquer desarranjo ou ainda que extraem dentes bons para trocar por próteses protocolo sobre implantes.
Aliás, falando em protocolos sobre implantes, recentemente vimos dentistas franceses serem presos por cometerem inúmeras mutilações em nome de prótese do tipo protocolo em larga escala – LEIA AQUI
Dessa forma, os procedimentos estão vindo antes do diagnóstico. O paciente chega ao consultório com inúmeros problemas que precisam primeiro de diagnósticos, isto é, dar nome aos problemas. Para, assim, depois ser possível abrir a caixa de ferramentas da Odontologia e escolher a melhor forma de resolver os problemas. Abraham Kaplan, dois anos antes do seu chará Maslow conceituou: “Eu chamo isso de A Lei do Instrumento e pode ser formulada da seguinte forma: dê um martelo a uma pequena criança e ela vai achar que tudo que ela encontrar pela frente precisa de batidas.”
O resultado imediato é lindo. A venda é tida como uma mudança de vida. Lágrimas de felicidade. A postagem na rede social traz mais pacientes que querem AQUELE PROCEDIMENTO que muitas vezes não é o que resolve o problema deles.
Obviamente que esses “Abrahams” estavam se referindo às ciências, aos métodos de pesquisa e ao ensino dentro de psicologia e de outras áreas da saúde. Da mesma forma que um cirurgião de coluna está mais propenso a resolver todos problemas de coluna operando colunas, um cirurgião dentista que faz muito bem as tais lentes de contato vai querer resolver todas as bocas que vierem pela frente com lentes de contato. Ele vai consciente ou inconscientemente ignorar problemas de posicionamento dos dentes, desgastes (des)necessários ou não e a longevidade do procedimento em nome da resolução imediata. Assim garantindo a linda foto do estilo antes e depois postada no Instagram. Aquele momento único de glória que hoje define o sucesso.
Entretanto, sabemos que sucesso em Odontologia tem tudo a ver com longevidade. Não adianta estar bonito na foto imediatamente após a solução e meses depois começar a quebrar. Isso o Insta não mostra.
Veja bem, não tenho nada contra lentes de contato, protocolos ou alinhadores. O problema é utilizar essas ferramentas quando elas não têm indicação. O profissional lança mão delas apenas porque sabe fazer e só faz isso. Só vende isso. Investiu e baseou sua prática clínica para isso e somente isso. Claro que dentro de todo esse sistema ainda temos a mão pesada do mercado da indústria em cima da gente. Lá estão eles te vendendo “um martelo” mais tecnológico que promete resolver cada vez mais problemas. Nessa onda toda a gente vai se moldando e entrando sem perceber numa zona de conforto quentinha onde nos sentimos seguros. Os pacientes que chegam pedindo lentes ou protocolos e os colegas gurus vendedores de soluções mágicas corroboram essas soluções. A conta bancária infla. Aí fica difícil mexer em time que está aparentemente ganhando.
Podem começar a reparar junto comigo e comentem também aqui no artigo, para eu ver se não estou perdendo minha sanidade. A lei do instrumento pode levar a prescrição excessiva de medicamentos (vide geração Ozempic), pedidos automatizados de exames por médicos, mutilações dentais em nome de uma prótese sobre implantes que pode dar problemas em longo prazo. Ortodontistas que só usam alinhadores e profissionais da estética que querem resolver tudo com lentes ou facetas. A inteligência artificial ainda cresce nos levando a essa automação do pensamento, sendo que, na área da saúde nada é 100% ou 0% e as palavras “sempre” e “nunca” quase nunca se encaixam.
“Sem desgaste” “Lentes de resina e porcelana” “Aparelho invisível que resolve tudo” “O protocolo vai resolver sua vida por ser fixo” – Quem nunca leu esse tipo de afirmação?
Enfim, a solução perpassa pelo estudo constante. Sempre refletindo e conversando com colegas e pacientes. Será que estamos oferecendo o melhor para nosso paciente ou apenas oferecendo aquele tratamento porque é o que sabemos fazer? Porque nos deixa seguros? A era dos hiper-especialistas vai precisar dar alguns passos para trás e aflorar mais uma vez o clínico geral. Aquele cara ou aquela moça que consegue enxergar o quadro geral. Sabe quando você está olhando algo tão de perto e não consegue desvendar o problema? É isso. O martelo serve para martelar pregos ou tirá-los do lugar. Entretanto temos a chave de fenda, a chave inglesa, o alicate e etc. Não podemos virar vendedores de insumos. Eu não vendo implante, resina, porcelana, aparelho. Vendo saúde, prevenção e solução de problemas bucais. Você também?
Um Abraço
Luiz Rodolfo
Equipe Dicas Odonto